Longos Anos

27 01 2012

 

Respiro em modo automático. Devagar. Profundamente. Ao ritmo das máquinas, a dor um eufemismo graças às drogas, os meus pensamentos – antes profuso enleio – agora desenhados, sequenciais.

Quase não sinto a mão da minha filha sobre a minha, suave, um sinal de negação e recusa. Sorrio docemente na direcção da sua silhueta desfocada, a luz da janela definindo o seu recorte. Não faço ideia se retribuiu com um sorriso triste ou com o habitual ícone da sua negação.

Oitenta e três longos anos. Cheguei até aqui sem saber o que isso significa. Colocar as questões não implica obter resposta. Mas isso, ao menos, eu sabia.

Tossico; a mão da minha filha aperta a minha com força, qual âncora. Sobreviver-me-à, tal como eu sobrevivi a muitos: Aos meus avós. Aos meus pais. A um dos meus irmãos. A tios e tias, primos e primas. A vários amigos. Ao amor da minha vida. Todos chagas, todos estimulantes para viver com mais intensidade. Todos idos.

Por momentos, o meu sangue bombeia com a revolta da dor que sei que ela irá sentir; a dor da impotência. Pior, por momentos sofro pelos meus filhos, sobrinhos e netos. Sofro o seu destino tal como vivo o meu. Sofro o destino da humanidade – precário, movimentado e provavelmente finito. O burborinho e a corrida ao significado das coisas.

Os meus olhos fecham-se por breves momentos. O lapso do cansaço, a bênção do sono. Pergunto-me se a morte é dotada essa inconsciência neutra, prolongando-se pela eternidade.

Não sei dizer se tenho medo, faz parte das questões que pergunto sem compreender a resposta. Como é que cheguei aqui?

A minha já filha não está. Apático, deixo que se dê o circo da atenção médica. Todos sabem que o meu fim se aproxima. Mais um. Encaminhar-me-ão ao seu deus, ao seu além? Quiçá ao vazio sem fim?

Tempo fundido, drogas e incoerências. Visitas confundem-se e dançam. Mãos sobre a minha, crianças com a incerteza nos olhos. E eu sorrio.

Oitenta e quatro longos anos. Felicidades e chagas, registos prolongando-se pelos mundos físico e digital, experiências, sorrisos, choros, angústias e celebrações. Sobrevivi a tanto, a tantos.

Pergunto-me se o meu amante me aguarda do outro lado.





Stasis

11 01 2012





melancolia foi uma folha ao vento

31 12 2011

Por fim brilha a lápide, sem musgo e rachas. Sem flores. Limpa, um memorial indistinguível da restante infinidade de tumbas e túmulos. Talvez com visitas, talvez sem.

Mas imperturbável.





Tumor

27 12 2011

Sonhos eróticos com os pratos que se servem frios, por fim exsudo o cancro agora tornado fel; talvez consiga um dia ignorar conjecturas e consequências





Sim não e cenas

12 12 2011

Aqui havia um texto gigante sobre idiotices de que nos convencemos e a outros. Em vez daquela pilha mal mastigada de palavras mais ou menos eloquentes, fica o seguinte: é um real bostedo a forma como vamos flutuando por coisas que damos como certas pelas razões mais idiotas, convencendo-nos – e a outrém – de que tudo é assim e assado, quando temos a sensação de que não é bem assim. No entanto, o verdadeiro vómito fecalóide, o facto digno da purga que falhamos vez e outra, é não termos sequer certeza de como traduzir esse sentimento de deslocação de factos por algo real, palpável, com o qual se consiga lidar de shotgun carregada, bisturi ou simplesmente dentes ou chapadas carinhosas.

Caso não me tenha esclarecido, aqui vai o resumo com um toque portuense saudoso: às vezes fico confuso como a merda.





O cheiro a desespero

8 10 2011





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2 10 2011

 

Renegando aqui o desejo de passar para a estética literária, descrevo a sensação de ultimamente: como que sentado no metro, parado mas em constante movimento. A única liberdade é a do espectador que observa um exterior desfocado.

[A Direcção deseja passar a informação de que o direito a pedidos ainda não foi recuperado. Assim sendo, a Direcção recomenda que introduza os mesmos na entrada anatómica que lhe seja mais confortável.]





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10 08 2011

Epitáfio: viveu





Tomorrow

14 06 2011

 

To-morrow, and to-morrow, and to-morrow,
Creeps in this petty pace from day to day,
To the last syllable of recorded time;
And all our yesterdays have lighted fools
The way to dusty death. Out, out, brief candle!
Life’s but a walking shadow, a poor player,
That struts and frets his hour upon the stage,
And then is heard no more. It is a tale
Told by an idiot, full of sound and fury,
Signifying nothing.

William Shakespeare





Sobre a Antecipação

26 05 2011

O tempo, como o calor, dilatava-me a pele. Gotículas de suor e tédio escorriam sobre o meu  corpo estático – extático – e a minha respiração desenhava ritmos no ar, compassos quatrenários de previsibilidade e elipses. O meu olhar repousava sobre o branco infinito e acima de mim, mas o tecto era tudo o que eu não via. Esferas de ar, nuvens de vapor, o quarto suavemente arredondado a gosto da temperatura. As paredes em sudorese, prenhes com o cheiro a sexo. E eu, qual escarro de vela ardida, derretia sobre a cama, os dedos como cordas correndo até ao chão.

Perante as minhas orbes estufadas, cegas, manchas negras dançavam sincopada ainda que previsivelmente, procurando rasgar-se do ar que respiro. A sua dança era a dança das baratas em fuga. Os seus passos eram o arraste tímido de um samba trazido a público pela primeira vez. Tão maquinal quanto indissociável de milénios de prática. Era o abate do teu peso sobre calcanhares teimosamente expressivos. Tu, na cozinha, com o bailado incessante da tua mente.

A minha pele desliza sobre a colcha, agora, deixando um pastoso rasto de secreções, eternamente desejosa de se destruir contra o chão. Alvo é o vapor que cerra o interior do quarto, uma enorme parede cimentando claustrofobia em mim. Logo se erguem as costelas em protesto, abrindo e empalando caprichosamente o ar em meu redor. A indiferença é uma máscara. E o calor forma gotas e borbotos brancos, remetendo – penso, divertido – para sémen.

Síncope. Tédio. Elipse. Uma valsa de desprezo e desprendimento dá início ao último andamento (vens na minha direcção), e o meu canal auditivo – um puzzle de cartilagens nervos e sangue barrado na almofada – bombeia derrotismo por entre as minhas certezas. As costelas tornam-se pó. Os meus órgãos internos escorregam como peixes mortos, e o coração abandona o seu trono no lado esquerdo do meu corpo.

Nada mais mereço do que a queda. Num mundo de incoerências e falhas, atrevi-me a ancorar o meu cepticismo ao porto da tua solidão. Sou um nada passageiro escorrendo do teu leito.

Abre-se a porta, uma escotilha no vácuo do universo. O vapor escoa. As paredes abortam. O meu corpo seca e o meu olhar reflecte a luz do corredor.

Sorris-me